Tintim: imperialismo e preconceito nos quadrinhos

Nei Nordin

 O Imperialismo do século XIX não foi apenas um fenômeno econômico ou político. A esfera ideológica e cultural também reproduziu seus preceitos de superioridade européia em todos os níveis de entreterimento. Acho que podemos tomar um exemplo bem marcado deste processo nas aventuras em quadrinhos do jornalista Tintim.

timtim 04Tintim é um personagem criado em 1929 por Georges Prosper Remi (conhecido como Hergé), nascido em Bruxelas em 1907. Suas aventuras ocorrem nos lugares mais exóticos do planeta. Veremos aqui a aventura “Tintim na África” que reforça o preconceito sobre a África e sobre o negro, esteriotipado na obra como criatura inferior e ingênua.

Embora o título original seja “Tintim no Congo” (Tintin au Congo), sua segunda história publicada, generaliza-se uma imagem da África como um continente atrasado, cujas condições de vida são precárias e o nível intelectual dos africanos extremamente baixo: um povo ingênuo e deslumbrado frente à superioridade da civilização européia. Como veremos, uma HQ recheada de puro e escancarado preconceito.

No desenrolar do enredo, Tintim “pinta e borda” entre os africanos com todas a prerrogativas que a cor de sua pele permite. Sendo o preconceito, o aspecto que mais desponta, demais valores negativos também são veiculados. Não espere do “herói” nenhuma consciência ecológica ou respeito pela vida animal: ambientalismo não era um tema em voga na década de trinta. Vários animais são cruelmente mortos como gorilas, antílopes, cobras e até um elefante de quem o rapaz retira as presas. Evidencia-se a “natureza servil” do continente ao bel prazer do homem branco.

A idéia central da aventura é a exaltação do heroísmo individual em meio a diversas situações de perigos e mistérios mirabolantes. Enquanto o protagonista europeu mostra-se corajoso e decidido, assumindo sempre o controle, o africano é apresentado como covarde, preguiçoso, submisso e de pouca inteligência.

É triste constatar que até mesmo o cachorro do herói, Milu, apresenta uma espécie de superioridade moral frente ao africano. Senta-se no banco da frente do automóvel enquanto Coco, o acompanhante negro, vai atrás e vê-se mesmo autorizado a dar conselhos ao menino, condenando-lhe a covardia. O próprio Coco fala com atitude servil, cabisbaixo, não usa sapatos e refere-se a si mesmo como “menino negrinho”, chamando o protagonista de “meu sinhô”.

timtim 02Uma passagem emblemática da inferioridade tecnológica africana apresenta-se quando o automóvel de Tintim enguiça sobre a linha férrea, sendo em seguida atingido por um trem. É engraçado o fato de que o veículo do herói não sofre nenhum dano sequer enquanto a locomotiva fica terrivelmente avariada, tombando para o lado: “Veja o que você fez aos nossos pobres negros”, exclama uma passageira, também africana. Tintim demonstra propensão em reparar o erro, mobilizando os passageiros (todos negros) a colocarem de volta a máquina sobre os trilhos. Estes, relutam em assumir o trabalho pesado, sendo em seguida repreendidos com severidade pelo europeu, que não faz esforço algum: “Como é? Vão ajudar, ou não? Depressa!”. Fica subentendida aqui a geopolítica do século XIX, reafirmando a moral de que o fraco não pode se auto governar, pois não possui competência ou aptidão para a independência e autonomia. É então necessária a intervenção benéfica e civilizadora do homem branco europeu para enquadrá-lo no “bom caminho”, nem que seja pela justificada e natural autoridade.

timtim8Em todas as 63 páginas da aventura, um dos raros momentos em que um africano age com iniciativa e determinação individual, ele o faz para aliar-se ao vilão que procura atentar contra a vida de Tintim. No restante da história, eles desempenham funções subalternas, são desengonçados, extremamente medrosos e maltrapilhos. Quando procuram vestir-se bem, o fazem de forma ridicularizada, tentando imitar os padrões europeus. Os guerreiros que convidam Tintim para uma caçada de leões, fogem quando a fera aparece, cabendo ao cão Milu, a bravura de salvar o dono de suas garras. O mesmo cão Milu será, mais adiante, aclamado rei de uma tribo de pigmeus.

Esta é a tônica dominante que se desenrola durante o enredo. Sabemos que essa foi realmente a ideologia do imperialismo durante o século XIX. A idéia de superioridade natural, baseada na adaptação das teorias de Darwin, reforçada pela tese da predestinação e do direito divino, fora apropriada pelo europeu, permeando toda a produção cultural daquele período. Tais preceitos, expressos aqui numa produção destinada ao público infanto-juvenil, foram abertamente defendidos na política e na sociedade da Era Vitoriana.

timtim4O fator agravante é constatar a popularidade de Tintim. Muito embora as considerações deste texto refiram-se a uma aventura específica e não ao conjunto de sua obra, da qual não sou conhecedor, é preocupante avaliar seu conteúdo educativo. Não se trata de literatura de tempos idos, pois Tintim guarda ampla divulgação na atualidade, contando com uma legião de fãs que lhe conferem o status de cult.. Existem inúmeros sites, fóruns e blogs sobre o personagem na internet, além de museus e clubes espalhados por diversos países da Europa. O diretor Steven Spielberg, detentor dos direitos de filmagem do personagem desde 1983, realizou seu sonho de realizar um filme sobre Tintim, lançado em 2011.

Tintim certamente contribuiu para influenciar uma geração, reforçando os preconceitos do imperialismo. Nada que o cinema norte americano não faça nos dias de hoje. Contudo, a leitura crítica do personagem nos ajuda a perceber que as tendências de uma época, sejam políticas, filosóficas ou espirituais, ramificam-se pelos mais diversos setores da sociedade e da produção cultural, seja ela erudita, popular ou infantil. Confirma-se a premissa de que tudo é História.

Rede social

kia soluçoes Fundo Traspng
Desenvolvido por Kia Soluções